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Tá faltando Natal!

Memórias natalinas de um antigo armador de Presépios

Ricardo Ishmael • 15/12/2023 às 7:00 - há XX semanas

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Zé é um cabra sincerão. Sem papas na língua, sem filtros, fala o que vem à cabeça. Simples assim. Zé tem 53 anos, é casado, pai de três filhos. Técnico em refrigeração, vive se vangloriando de ter instalado mais de mil aparelhos de ar condicionado em Salvador. Até na casa de Jorge Amado já trabalhou, e conta isso com um orgulho que dá gosto de ver. “Dona Zélia me ofereceu suco de pitanga. Seu Jorge, um galegão porreta…”, revelou.


				
					Tá faltando Natal!
Memórias natalinas de um antigo armador de Presépios. Foto: Arquivo Pessoal

Zé é meu amigo das antigas, desde o ano em que cheguei a Salvador para trabalhar na TV Bahia. É a ele que confio a manutenção dos meus aparelhos. Claro que, após todos esses anos de convivência, temos abertura para conversar sobre (quase) tudo. Política. Jornalismo. Religião. Coisas bobas também, amenidades cotidianas. Partiu dele, ontem, uma frase que me transportou imediatamente ao meu passado, à infância e à adolescência em Serrinha.

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Chegando ao meu apartamento para um reparo no ar condicionado do quarto, olhou para os lados, fez cara de quem não gostou. Largou. “Falta Natal nessa casa”. Disse mais. “Tá muito sem graça.” Fiquei parado, alguns segundos em silêncio. Zé estava certo. Não havia, de fato, nada que lembrasse o Natal. Nada de pinheiro, guirlanda, pisca-pisca, mini Papai Noel. Foi, então, que me lembrei do Natal em Serrinha, desde o final dos anos 1980 até o início dos anos 2000.

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Era a época que eu mais gostava, muito mais que o São João ou o meu próprio aniversário. No Natal tudo parecia mágico. Desde que me entendo por gente, mainha “arma” o Presépio. É assim que a gente diz lá em Serrinha, “armar o Presépio”. Não sei quando começou, mas o fato é que o ritual da arrumação do Presépio virou o meu momento mais feliz.

Mainha comprava papel metro, tinta Xadrez “cor de terra” (para imitar as rochas da gruta onde o Menino Jesus nasceu), fazia uma mistura com água e goma. Daquilo resultava uma cola com cheiro forte que a gente espalhava pelo papel, e esperava secar. Depois, num canto da sala, usando uma base de caixas de papelão, usávamos aquele papel para esculpir as rochas. Horas naquilo… Uma satisfação sem tamanho. Depois era a vez de preencher as reentrâncias das rochas com as samambaias (a gente dizia “sambambaia”), pequenas bromélias, búzios que mainha comprava na feira livre.

Teve uma época em que a gente ia para as roças catar os arbustos, uma aventura que jamais saiu da minha mente. Finalmente vinham os personagens principais: as imagens em gesso de Jesus, Maria e José, os Reis Magos, o pastor, a vaca e o burro (uma vez vivi o “burrinho” no Auto de Natal da catequese).

Beroca, um dos meus irmãos mais velhos e meu padrinho de Crisma, chamava os Reis Magos de “Os Puxa Sacos”. Mainha, obviamente, danava a reclamar. No nosso Presépio tinha espaço para todo mundo: as imagens de gesso, os nossos brinquedos (carrinhos, índios e super-heróis de plástico), o Papai Noel gordinho que fora da Vovó Flora, o pisca-pisca (quando a situação melhorou e pudemos comprar um no camelô), além de outros tantos personagens.

Tudo perfeitamente adaptado à cena cristã. Uma vez, minha irmã inventou de fazer uma árvore coberta de neve: um galho seco, um monte de chumaços de algodão, bolinhas de vidro colorido. Para nós, nada daquilo era cafona. Nem sabíamos o que significava ser cafona. Pelo contrário.

Nos orgulhávamos da obra de arte, especialmente quando os vizinhos apareciam para visitar o Presépio e diziam coisas bonitas. Ainda hoje é assim, porém num tamanho menor. Do canto da sala, o Presépio passou para um canto da mesa, mas ainda assim mantém o seu brilho, a sua magia. Diante dele eu volto a ser aquele menino fascinado pelo Natal. Essas memórias fizeram com que eu tomasse uma decisão: depois da observação de Zé, dei um ar “natalino” à minha casa. Comprei uma guirlanda, encomendei um Presépio. Tem uma árvore na minha estante também. Fiz uma foto e mandei para o meu amigo sincerão. Ele me respondeu com uma única frase: “Agora sim tá com cara de casa!”

Imagem ilustrativa da coluna Clube do Livro
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